26 de ago. de 2010

Jonathan Rodriguez

DIÁRIO DE BORDO:

13/08/10 - 02:45.


Eu lembro da vez em que estive numa cidade sem espelhos.

Hospedei-me num motel barato e vazio. A chave de meu quarto foi dada por algum tipo de criatura que se assemelhava a um ser humano. Ela tinha um crachá em seu bolso, o nome da criatura era “Marta”. Larguei minhas coisas no quarto e resolvi andar pela cidade.

Mulheres despenteadas e sem maquiagem. Homens com barba por fazer. Todos solteiros, todos julgavam a aparência do próximo. Cada um mais feio que o outro. Cada um com nojo da pessoa ao lado.

Estava apenas de passagem por lá. Não gostaria de demorar muito para sair daquele lugar horrendo. Todos me olhavam, as mulheres me desejavam,sentia isso. As mulheres mais apavorantes que havia visto na vida. Obesas, de bigode, com sobrancelhas grossas e pernas de jogadores de futebol. O horror tomava conta de todo o meu corpo e minha mente se esforçava a aceitar aquela realidade.

Até que me ocorreu, uma das oportunidades que a vida oferece.

Armei uma tenda na praça da igreja, pus um cartaz chamativo na frente “Saiba a visão que os outros têm de você”. Dentro da tenda apenas um grande espelho de frente para a abertura. Cobrei 15 reais pela entrada e sentei numa cadeira de balanço. Não demoraram muito, os curiosos perfilaram-se. Ansiosos para saber o que os outros poderiam ver neles próprios.

O primeiro foi um rapaz jovem; talvez uns 16 anos. Cheio de espinhas e cabelo ensebado pela porca higienização pessoal. Ele tinha um perfil semelhante à Cássia Eller, porém, menos masculino. Ao sair da barraca seus olhos estavam vazios. Parecia ter entendido, compreendido a razão pela qual todos saíam de seu caminho quando andava pela calçada. Entendeu naquele momento o porquê de seu rosto sangrar tanto. Ele parou e encarou a multidão que o olhava com uma curiosidade felina. Ele tapou o rosto e saiu correndo “Não olhem para mim”. Uma reação natural, eu pensei. Talvez, com o tempo, a verdade o faça sentir-se melhor consigo mesmo. Quem sabe o que se esconde por debaixo de todas aquelas espinhas e cabelo ensebado?

Estava perdido em meus pensamentos. Esqueci de cobrar uma mulher imensa que mal cabia em minha tenda. Como não havia a percebido? De fato, apenas saí de meu transe devido ao forte odor de fritura, que tipo de pessoa procura respostas agarrada num hambúrguer? Talvez, seja sua tábua de salvação. O único amigo que estaria do seu lado quando a realidade viesse à tona. Toda aquela montanha de imperfeições, com seus 276 quilos, cabelo mal lavado, dobras em lugares do corpo humano das quais eu nunca havia lido em nenhum livro de biologia. Como aquela mulher se locomovia? Como ela passou despercebida por mim? Como cobrar 15 reais de um rinoceronte com um hambúrguer?

Quando ela saiu da tenda, seu rosto estava pálido. Temi pelo pior. Um infarto, talvez. Ela Chorava desesperadamente, ninguém tentou ajudá-la. Aproximei-me e lhe cobrei os 15 reais. Ela abriu uma bolsa de couro preto me entregou o dinheiro. “Como o senhor pôde?”. Dei de ombros. Ela andou por alguns metros até cair de joelhos no chão. Ao menos, acredito que eram os seus joelhos. Ela vomitou algo que continha todas as cores do arco-íris. Culpa talvez dos shakes, hambúrgueres e tortas que havia ingerido antes de saber a terrível verdade. Uma visão multicolorida de todas as variedades que a lanchonete local tinha para lhe oferecer. Pela primeira vez em toda a sua existência, aquela mulher imensa teve vergonha e chorou. Foram necessárias algumas tentativas e muito esforço para se levantar. Novamente, ninguém a ajudou. Todos estavam muito preocupados, perdidos em seus próprios pensamentos, seus próprios problemas. Estariam realmente prontos para encarar os horrores que residiam dentro daquela tenda?

Voltei para a minha cadeira e anunciei que as próximas pessoas deveriam pagar 50 reais. Meu bom tino comercial avisava que estavam curiosos o suficiente.

Todos entraram. No dia seguinte, a cidade estava vazia. Ninguém saía de sua casa com medo do que os vizinhos poderiam pensar. Medo dos olhares e do julgamento alheio.

Percebi que a minha presença ali não era mais necessária e até arriscada. Recolhi as minhas coisas. Marta, a criatura, não se encontrava. Deixei a chave no balcão.

Só restava a tenda a ser desmontada. Ao chegar à praça da igreja um calafrio percorreu minha espinha. Senti que olhos me vigiavam, vozes cochichavam. Estariam falando de mim? A tenda estava aberta, um convite. Quanto tempo estaria ali, dois dias, quatro talvez? Porque estava tão nervoso? Dei um passo em direção a sua entrada. Estava em transe, estava perdido em meus pensamentos. Quando um forte de cheiro de fritura me fez cair em si. O rinoceronte, numa agilidade inacreditável pulou por cima de mim “NÃO!” gritou e destruiu completamente a minha tenda. O som de meu espelho se quebrando foi abafado pela manta de gordura que cobriu completamente a tenda. Então ela sorriu, levantou-se na terceira tentativa e mostrou o dedo do meio. Senti traído, estava ajoelhado perto dos cacos tentando observar meu reflexo, enquanto aquela mulher imensa gargalhava e marchava em direção à lanchonete. Todos saíram de suas casas, todos me olhavam, todos me julgavam. E eu não fazia idéia do que estava acontecendo.

Jonathan Rodriguez

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14 de jan. de 2010

Reza do meio dia

Com toda a força que tinha em minhas pernas, pedalava até a ponta do morro. A estrada era de chão batido, hoje é asfaltada. Deitados nas sombras, alheios a bicicletas, os cachorros preguiçosos e acostumados com a criançada que se encontrava por lá, bocejavam e viraram suas barrigas para cima. Aproveitando os últimos anos de sossego, antes dos traficantes e dos caminhões.
Júlia estava sempre por lá. Praticamente a minha vida toda fui louco por Júlia, creio que ela nunca soube disso. Encontrávamos todos os finais de tarde no fim da estrada, na nossa frente, a cidade. Ficávamos por lá até as 19 horas. Praticamente não fazíamos nada, apenas conversávamos. Na volta ela sentava entre o guidão e meu banco. Dava uma carona para ela até sua casa. Ela tinha cabelos longos, lisos e castanhos. O cheiro dos cabelos dela me lembrava canela. O caminho até a casa era feito em silêncio, mas eu sentia algo especial. Eu me sentia bem, me sentia feliz e completo. Tudo isso antes de qualquer pensamento “depravado” que viria a ter por Júlia mais tarde. O sentimento mais puro e honesto que apenas a idade me permitia ter e que agora me sinto logrado pelos anos que se passaram e minha inocência e sentimentos sinceros perdidos para sempre.
Criança, não cresça tão rápido.

6 de jan. de 2010

Diário de bordo 02/01/10

A causa era desconhecida. Os motivos, obscuros. A pressão nos pneus abaixo de 18. Meus olhos estavam em perfeitas condições, o meu cérebro não. O conflito de realidade, a crueldade das imperfeições e minhas condições críticas intactas.

Percorria a rua deserta e escura, meus faróis estavam apagados. Meu cérebro não entendia a mensagem que meus olhos, aflitos e cansados lhe informava. Uma voz presa dentro de um carro com os vidros fechados, o fedor de cigarro, cerveja e fritura.

Aquela casa, mais uma vez aquela casa. Meu cérebro de instante tornou-se consciente, mas, impotente. Minhas pernas anarquizadas, elas não tinham mais um governo, não obedeceriam mais ordens de superiores.

A escada, a maldita escada, aquela maldita casa. Mais uma vez naquela casa. O calor. O calor do verão de Porto Alegre. A ressaca de fim de ano não curada.

Lá estava ela, nua, de quatro na minha frente. Mais uma vez. Meu cérebro gritou “fuja para as colinas!”, meus olhos não piscavam e minhas pernas oficialmente estavam em greve. O vizinho observava tudo com um binóculo pela porta aberta, o calor e o suor. O vinho, importante e leal vinho, ao lado do colchão. O calor de Porto Alegre, a ressaca mal curada, a ignorância de minhas condições coordenativas, os gemidos de uma mulher, o vizinho provavelmente masturbava-se do outro lado da rua, câimbras, náusea e um carro pegando fogo duas quadras dali. Sorrimos, deitamos, ela dormiu eu queria dormir. . E eu me sentia bem
Quem estava no comando, definitivamente sabia o que estava fazendo.